2 de novembro de 2021

Memórias do Cemitério do Quincuncá: O caso dos "tirador de figo"

Papa figo, tirador de figo, homem do saco - Ilustração de Cícero Leonildo de Morais.
Ilustração do "tirador de figo", por Cícero Leonildo de Morais, a quem agradeço pela contribuição. 

     Evidentemente os Cemitérios são fontes de pesquisa histórica, na medida em que a arquitetura tumular ou a ausência dela exprime tanto aspectos culturais quanto econômicos dos que lá jazem. Segundo fontes orais, desde a sua fundação, com a benção do terreno pelo Padre Cícero Romão Batista (1844-1934), o Cemitério de Quincuncá é alvo de muitas narrativas, muitas vezes intrigantes. À começar da escolha do terreno, visto pelos moradores da época como impróprio para tal finalidade pela presença de enormes lajeiros, mas que nunca representaram de fato um problema, a ponto de impedir algum sepultamento, o que muitos consideram um milagre. 

    As histórias que se revestem de um tom misterioso e peculiar não param por aí: relatos de corpos santos, que quando arrancados exalavam um doce perfume, dando a entender uma ideia de santificação; de pessoas enterradas vivas, e de um homem que dançou com um cadáver. Entretanto, a  memória que irei frisar, ao contrário das demais tem maior destaque, por sua ampla difusão entre os moradores. 

    O papa-fígo ou "velho do saco", e ainda "homem do saco" é uma lenda do folclore brasileiro muito difundida em especial nas zonas rurais, com o intuito de evitar que crianças se comunicassem com estranhos. Reza a lenda que seria necessário que os papa-figos comessem o fígado de uma criança, para que ficassem curados da hanseníase (ou lepra), doença que atinge mucosas, nervos periféricos e lesões na pele, tendo em vista que acreditava-se antigamente que era uma doença causada pelo sangue impuro, e como o sangue é filtrado pelo fígado, muitos achavam que o consumo de fígado sadio, sobretudo de crianças por serem consideradas seres mais puros, restabeleceriam sua saúde. 

     A lenda passou contudo, por resignificações, na Serra do Quincuncá, município de Farias Brito-CE, e regiões próximas, esse personagem era chamado de "tirador de figo". E diferente da lenda não tinha como foco somente raptar crianças desobedientes, mas de retirar esse órgão as escondidas de defuntos, logo após o seu sepultamento, dizia-se que para fazer remédios ou pesquisas. 

     Essa lenda com tons de veracidade, não só amedrontava crianças em um passado não muito distante, como também tiravam o sossego dos familiares dos falecidos, que muitas vezes optavam por vigiar o túmulo, a fim de garantir que ele não fosse violado. 

    Entre 1935 a 1948, conforme análise documental, o Cemitério de Quincuncá permaneceu fechado, sem a permissão de novos sepultamentos. Conforme Antonio Fonseca Dias "Tota Fonseca" (101 anos), um dos motivos apontados para isso seria justamente o apogeu dessa prática na localidade, além de uma política estadual de combate a malária que pregava que o sepultamento de corpos que sucumbiram a doença deveria ser realizado em lugares específicos. Na época quando alguém da comunidade ou de vilarejos vizinhos faleciam, seus corpos eram transladados dentro de redes aos campos santos de Santo Amaro (Assaré-CE) e Quixará (Farias Brito-CE). Nesse período, por ser mais cómodo, se habituaram também enterros em uma porção de terras situada no Sítio Açude Velho, há cerca de 1.5km de Quincuncá, local marcado pela existência de um Cruzeiro, memória que adiante será relatada em um artigo exclusivo.

     Por mais que pareça um absurdo ou apenas uma lenda criada para intimidar crianças, muitos idosos "juram de pés juntos", como diz o ditado, da existência desse indivíduo atuando principalmente no Cemitério. Ainda sobre os "tiradores de fígo", é relatado pela oralidade, que esta prática cessou após ameaça de familiares, que ao sepultarem um ente querido, asseguraram que aquele que o infringisse não ficariam sem punição. 

     Cabe destacar que anterior a administração do Prefeito, João Antero da Silva "Silva Antero", entre 1951 a 1955, não existiam muros como nos dias atuais no Cemitério, o local era cercado por varas, que impediam o acesso de porcos que eram criados soltos, bem como de outros animais.

     Em 1948, após 12 anos em inatividade, o Cemitério foi finalmente reativado. Tal ação apesar do contexto que envolviam os tiradores de fígo, como um dos responsáveis, foi de certa forma importante, no sentido de amenizar a situação do campo santo, que certamente já enfrentava nesse período um momento de lotação. Desde então, há 73 anos, o Cemitério Padre Cícero de Quincuncá, continua a receber os corpos dos filhos e amantes dessa terra. 

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Fontes:

Websites consultados:

Toda Matéria. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/papa-figo/>. Acesso em 29 de outubro de 2021. 

Site de dicas. Disponível em: <https://www.sitededicas.com.br/folclore-o-mito-do-papa-figo.htm> Acesso em 29 de outubro de 2021;

Ministério da saúde. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/pt-br/o-que-e-hanseniase> Acesso em 29 de outubro de 2021. 

Fontes orais:

  • Antônio Fonseca Dias (Tota Fonseca);
  • Osmundo Pereira;
  • Raimundo Ferreira (Raimundo Rosa) - Entrevista concedida em 2017; 
  • Cecília Pereira Dias;
  • Vicente Carneiro de Lima (Vicente Cosmo) - Entrevista concedida em 2015.

Um comentário:

  1. Morava atrás do cemitério e morria de medo de ir ao quintal da nossa casa a noite 🌃.

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